RIO - Nei Lopes diz que o samba é o elemento em comum entre os três
livros que lançará no Parque das Ruínas, dentro da Festa Literária de
Santa Teresa, a partir das 16h de sábado, quatro dias antes de completar
70 anos. Mas a afirmação beira o óbvio diante do fato de que o autor é
um dos maiores nomes do samba, como compositor e como pensador. O que os
três livros da editora Pallas reforçam é seu papel como historiador de
manifestações e tradições que estão distantes das hegemonias culturais,
sociais e geográficas do Rio e do Brasil. Ao ampliar sua obra, que se
aproxima dos 30 títulos, Nei se firma como artista e intelectual
interessado nos avessos do país.
O romance "A lua triste descamba"
tem como universo os primórdios do samba, sobretudo em Madureira, entre
os anos 1920 e 40. É a segunda etapa de uma trilogia iniciada com
"Mandingas da mulata velha na Cidade Nova" (2009), que se passava na
década de 1910. O "Dicionário da hinterlândia carioca" traça um painel
do subúrbio, sistematizando as informações que o divertido
"Guimbaustrilho e outros mistérios suburbanos" (2001) transmitiu em
forma de crônica. E a edição ampliada do "Novo dicionário banto do
Brasil" é o mais recente capítulo das pesquisas etimológicas de Nei,
sempre voltadas para as línguas africanas.
— Sei que pode parecer
afirmação pretensiosa, mas não é, é constatação: Lima Barreto disse que
um dia escreveria a história do negro no Brasil, e de certa forma eu já
fiz isso; Machado de Assis, no "Memorial de Aires", disse que estava
para se escrever a história do subúrbio carioca, e eu já fiz também. Não
que tivesse tomado essas coisas como missão. Foram a curtição e a
vivência desses ambientes que me levaram a isso. Tenho feito tudo com
sentimento — afirma Nei.
Imagem de ranzinza
Ele
se formou advogado em 1966, exercendo a profissão até 1972, quando
passou a viver de música. Não fez mestrado e doutorado, tendo construído
uma carreira de pesquisador à margem de títulos e elogios acadêmicos.
Só recentemente começou a ser respeitado por núcleos de intelectuais que
trabalham em áreas próximas às dele.
— A academia é muito
corporativista, mas isso está acabando. Ainda mais agora, com a decisão
do Supremo — diz, referindo-se ao reconhecimento da constitucionalidade
das cotas raciais nas universidades, motivo de óbvio contentamento para
ele. — Foi desconstruído todo um edifício de argumentos.
Seus
argumentos demoraram a ganhar consistência e só se solidificaram a
partir do empurrão de uma tragédia. Nei diz que, na década de 1970,
estava preocupado em sobreviver e fazer música. Compôs muitos sucessos,
principalmente com Wilson Moreira: "Senhora liberdade", "Goiabada
cascão", "Coisa da antiga", "Gostoso veneno", "Gotas de veneno". E
combinou arte e militância seguindo Candeia no centro de cultura negra e
escola de samba Quilombo. Mas foi em 1981, quando seu filho Brício
morreu afogado aos 4 anos, que a grande virada se deu.
— Pensaram:
"Esse cara vai desbundar." Mas mudei para melhor. Comecei a estudar
mais, escrever, pensar. E, depois, veio a religião para dar o suporte.
Tive a oportunidade rara de conhecer em Cuba a vertente da religião
afro-americana que embasa tudo, que é o fundamento. Isso me ajudou a
superar a perda e a organizar a vida — conta ele, pai de outro filho e
avô de dois netos.
Com os estudos, os escritos e os pensamentos
veio a imagem pública de ranzinza, polemista em assuntos como racismo,
cotas e cultura pop. É uma imagem que não se encaixa nas suas letras de
música, quase sempre divertidas, cheias de malandragem, breques, gírias e
gafieiras, como "Tempo do Dondon" e "Baile no Elite".
—
Construíram para mim uma persona que não é verdadeira. Sou bem-humorado,
meu estado de espírito normal é a sátira, a brincadeira, a crônica. Mas
tem hora de falar sério também. Quando se consegue falar de coisa séria
parecendo que é sacanagem, melhor — diverte-se.
Nei é o caçula de
13 irmãos de uma ampla e tradicional família do Irajá — bairro que
homenageou em seu "Samba do Irajá" ("É isso aí! Ê Irajá/ Meu samba é a
única coisa que eu posso te dar"). Viveu e ouviu inúmeras histórias
suburbanas, do Méier à antiga Zona Rural. Procurou organizá-las no
"Dicionário da hinterlândia carioca" — hinterlândia é um termo das
ciências sociais para definir áreas geográficas do interior. A Festa da
Penha, a Fera da Penha, a Noivinha da Pavuna, os clubes de futebol, as
escolas de samba, muita coisa está nos verbetes.
— Acho que o livro pode dar pé por causa do momento atual da cultura carioca, de visibilidade para esse outro lado — aposta.
Nei
vive desde 2000 para além do outro lado. Decidiu morar em Seropédica,
Baixada Fluminense. A mudança de Vila Isabel, onde diz que era "muito
solicitado para farra", para um lugar isolado influiu decisivamente no
aumento de sua produção literária ("Brinco que não tenho o que fazer,
então escrevo bobagens") e num olhar crítico sobre o Rio.
— Tudo
aqui é mais difícil — atesta, num dia de chuva forte e telefone mudo, na
varanda de casa. — As carências estabelecem um comparativo. Tenho uma
visão melhor da realidade, sem o oba oba do carioca.
Não se espere
dele empolgação com o suposto bom momento do samba. Embora ressalte não
ter a fórmula para transformar o micro em macro, aponta que "a Lapa não
gera o disco que poderia tocar no rádio, estar na TV e criar uma cadeia
de produção, como os sertanejos".
— Dizem que o samba tem mídia,
mas não tem. Você liga o rádio e praticamente não ouve. Não é dada ao
samba a importância que ele merece. O país é extremamente colonizado em
termos culturais. As pessoas não percebem como é feia essa dependência. É
o cara sempre voltado para o exterior, não olhando para as coisas daqui
— toca Nei num ponto em que não consegue coro de muitos artistas.
Fora das escolas de samba
Do
Salgueiro — de onde participou, como componente de ala e depois
compositor, entre 1963 e 1989 — e do ambiente das escolas de samba, ele
se afastou por vê-las distantes do sentido civilizatório que havia em
sua origem, quando punham no centro da cidade (nos sentidos físico e
metafórico) expressões e personagens que habitualmente estavam à margem.
São essas expressões e esses personagens que ganham destaque em seus
livros, como "A lua triste descamba", no qual figuras como Juvenal e
Mário de Madureira são colagens de pessoas que realmente existiram.
—
Cada núcleo fundador de escola de samba tem sua história a ser contada.
Por exemplo: quem foi Claudionor, da Portela? Dizem que foi o maior
passista do samba no tempo em que não existia passista. A mitologia e o
repertório dessas pessoas vão se perdendo. Para mim, é mais confortável,
menos questionável e mais livre tratar disso como ficção — aponta Nei,
que retirou o título do romance de um verso de sua tia Zica, lendária
portelense.
Ele começa a preparar um livro que abordará esses
temas não pelo viés da ficção. Será um "Dicionário histórico e crítico
do samba" (nome provisório). E fechará a trilogia ficcional com uma
história ambientada nos anos 1950, mais uma vez com negros como
protagonistas.
Antes, no entanto, o autor de cerca de 700
composições vai comemorar 70 anos também com samba. Em 27 de maio,
autografa os três novos livros numa festa musical no Candongueiro, em
Niterói. A gravadora Fina Flor lançará até julho "Samba de fundamento",
seleção feita por ele de faixas de seus dois últimos CDs, "Partido ao
cubo" e "Chutando o balde". E, se o projeto tiver os recursos
necessários, gravará um disco com a orquestra paulistana Heartbreakers,
de Guga Stroeter, cantando sucessos do chamado pagode de fundo de
quintal (Almir Guineto, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila etc.) em
roupagem de gala.