02/06/2012

Nei Lopes lança três livros e se firma como um dos maiores artistas e intelectuais do samba

Nei Lopes em Seropédica, onde vive: autor de 700 músicas e 30 livros, ele estará sábado na Festa Literária de Santa Teresa
Foto: Leonardo Aversa / Agência O GLOBO

Nei Lopes em Seropédica, onde vive: autor de 700 músicas e 30 livros, ele estará sábado na Festa Literária de Santa Teresa Leonardo Aversa / Agência O GLOBO
RIO - Nei Lopes diz que o samba é o elemento em comum entre os três livros que lançará no Parque das Ruínas, dentro da Festa Literária de Santa Teresa, a partir das 16h de sábado, quatro dias antes de completar 70 anos. Mas a afirmação beira o óbvio diante do fato de que o autor é um dos maiores nomes do samba, como compositor e como pensador. O que os três livros da editora Pallas reforçam é seu papel como historiador de manifestações e tradições que estão distantes das hegemonias culturais, sociais e geográficas do Rio e do Brasil. Ao ampliar sua obra, que se aproxima dos 30 títulos, Nei se firma como artista e intelectual interessado nos avessos do país.
O romance "A lua triste descamba" tem como universo os primórdios do samba, sobretudo em Madureira, entre os anos 1920 e 40. É a segunda etapa de uma trilogia iniciada com "Mandingas da mulata velha na Cidade Nova" (2009), que se passava na década de 1910. O "Dicionário da hinterlândia carioca" traça um painel do subúrbio, sistematizando as informações que o divertido "Guimbaustrilho e outros mistérios suburbanos" (2001) transmitiu em forma de crônica. E a edição ampliada do "Novo dicionário banto do Brasil" é o mais recente capítulo das pesquisas etimológicas de Nei, sempre voltadas para as línguas africanas.
— Sei que pode parecer afirmação pretensiosa, mas não é, é constatação: Lima Barreto disse que um dia escreveria a história do negro no Brasil, e de certa forma eu já fiz isso; Machado de Assis, no "Memorial de Aires", disse que estava para se escrever a história do subúrbio carioca, e eu já fiz também. Não que tivesse tomado essas coisas como missão. Foram a curtição e a vivência desses ambientes que me levaram a isso. Tenho feito tudo com sentimento — afirma Nei. 
Imagem de ranzinza
Ele se formou advogado em 1966, exercendo a profissão até 1972, quando passou a viver de música. Não fez mestrado e doutorado, tendo construído uma carreira de pesquisador à margem de títulos e elogios acadêmicos. Só recentemente começou a ser respeitado por núcleos de intelectuais que trabalham em áreas próximas às dele.
— A academia é muito corporativista, mas isso está acabando. Ainda mais agora, com a decisão do Supremo — diz, referindo-se ao reconhecimento da constitucionalidade das cotas raciais nas universidades, motivo de óbvio contentamento para ele. — Foi desconstruído todo um edifício de argumentos.
Seus argumentos demoraram a ganhar consistência e só se solidificaram a partir do empurrão de uma tragédia. Nei diz que, na década de 1970, estava preocupado em sobreviver e fazer música. Compôs muitos sucessos, principalmente com Wilson Moreira: "Senhora liberdade", "Goiabada cascão", "Coisa da antiga", "Gostoso veneno", "Gotas de veneno". E combinou arte e militância seguindo Candeia no centro de cultura negra e escola de samba Quilombo. Mas foi em 1981, quando seu filho Brício morreu afogado aos 4 anos, que a grande virada se deu.
— Pensaram: "Esse cara vai desbundar." Mas mudei para melhor. Comecei a estudar mais, escrever, pensar. E, depois, veio a religião para dar o suporte. Tive a oportunidade rara de conhecer em Cuba a vertente da religião afro-americana que embasa tudo, que é o fundamento. Isso me ajudou a superar a perda e a organizar a vida — conta ele, pai de outro filho e avô de dois netos.
Com os estudos, os escritos e os pensamentos veio a imagem pública de ranzinza, polemista em assuntos como racismo, cotas e cultura pop. É uma imagem que não se encaixa nas suas letras de música, quase sempre divertidas, cheias de malandragem, breques, gírias e gafieiras, como "Tempo do Dondon" e "Baile no Elite".
— Construíram para mim uma persona que não é verdadeira. Sou bem-humorado, meu estado de espírito normal é a sátira, a brincadeira, a crônica. Mas tem hora de falar sério também. Quando se consegue falar de coisa séria parecendo que é sacanagem, melhor — diverte-se.
Nei é o caçula de 13 irmãos de uma ampla e tradicional família do Irajá — bairro que homenageou em seu "Samba do Irajá" ("É isso aí! Ê Irajá/ Meu samba é a única coisa que eu posso te dar"). Viveu e ouviu inúmeras histórias suburbanas, do Méier à antiga Zona Rural. Procurou organizá-las no "Dicionário da hinterlândia carioca" — hinterlândia é um termo das ciências sociais para definir áreas geográficas do interior. A Festa da Penha, a Fera da Penha, a Noivinha da Pavuna, os clubes de futebol, as escolas de samba, muita coisa está nos verbetes.
— Acho que o livro pode dar pé por causa do momento atual da cultura carioca, de visibilidade para esse outro lado — aposta.
Nei vive desde 2000 para além do outro lado. Decidiu morar em Seropédica, Baixada Fluminense. A mudança de Vila Isabel, onde diz que era "muito solicitado para farra", para um lugar isolado influiu decisivamente no aumento de sua produção literária ("Brinco que não tenho o que fazer, então escrevo bobagens") e num olhar crítico sobre o Rio.
— Tudo aqui é mais difícil — atesta, num dia de chuva forte e telefone mudo, na varanda de casa. — As carências estabelecem um comparativo. Tenho uma visão melhor da realidade, sem o oba oba do carioca.
Não se espere dele empolgação com o suposto bom momento do samba. Embora ressalte não ter a fórmula para transformar o micro em macro, aponta que "a Lapa não gera o disco que poderia tocar no rádio, estar na TV e criar uma cadeia de produção, como os sertanejos".
— Dizem que o samba tem mídia, mas não tem. Você liga o rádio e praticamente não ouve. Não é dada ao samba a importância que ele merece. O país é extremamente colonizado em termos culturais. As pessoas não percebem como é feia essa dependência. É o cara sempre voltado para o exterior, não olhando para as coisas daqui — toca Nei num ponto em que não consegue coro de muitos artistas. 
Fora das escolas de samba
Do Salgueiro — de onde participou, como componente de ala e depois compositor, entre 1963 e 1989 — e do ambiente das escolas de samba, ele se afastou por vê-las distantes do sentido civilizatório que havia em sua origem, quando punham no centro da cidade (nos sentidos físico e metafórico) expressões e personagens que habitualmente estavam à margem. São essas expressões e esses personagens que ganham destaque em seus livros, como "A lua triste descamba", no qual figuras como Juvenal e Mário de Madureira são colagens de pessoas que realmente existiram.
— Cada núcleo fundador de escola de samba tem sua história a ser contada. Por exemplo: quem foi Claudionor, da Portela? Dizem que foi o maior passista do samba no tempo em que não existia passista. A mitologia e o repertório dessas pessoas vão se perdendo. Para mim, é mais confortável, menos questionável e mais livre tratar disso como ficção — aponta Nei, que retirou o título do romance de um verso de sua tia Zica, lendária portelense.
Ele começa a preparar um livro que abordará esses temas não pelo viés da ficção. Será um "Dicionário histórico e crítico do samba" (nome provisório). E fechará a trilogia ficcional com uma história ambientada nos anos 1950, mais uma vez com negros como protagonistas.
Antes, no entanto, o autor de cerca de 700 composições vai comemorar 70 anos também com samba. Em 27 de maio, autografa os três novos livros numa festa musical no Candongueiro, em Niterói. A gravadora Fina Flor lançará até julho "Samba de fundamento", seleção feita por ele de faixas de seus dois últimos CDs, "Partido ao cubo" e "Chutando o balde". E, se o projeto tiver os recursos necessários, gravará um disco com a orquestra paulistana Heartbreakers, de Guga Stroeter, cantando sucessos do chamado pagode de fundo de quintal (Almir Guineto, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila etc.) em roupagem de gala.

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/nei-lopes-lanca-tres-livros-se-firma-como-um-dos-maiores-artistas-intelectuais-do-samba-4791816#ixzz1uK1FglW3
© 1996 - 2012. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ENQUANTO O TAMBOR NÃO CHAMA VIAJANDO!

     ENQUANTO O TAMBOR NÃO CHAMA VIAJANDO! Minha grata surpresa foi a tradução de alguns poemas para o espanhol por Demian Paredes, da Argen...