06/06/2012

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Professores Maria Nazareth e Eduardo de Assis

Literatura Negra
“Muito de nossa história ganha sentido novo quando colocado através do olhar das vítimas da pretensa “democracia racial” aqui existente”
Causa Operária entrevista o professor Eduardo de Assis Duarte, coordenador do projeto integrado de pesquisa afrodescendências: raça/etnia na cultura brasileira, responsável pela coleção Literatura e Afrodescendência no Brasil e o literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira, sobre o livro, coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (Ed. UFMG, 2011), organizado por ele

19 de maio de 2012
Causa Operária: Qual a importância da publicação da coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica para o estudo da literatura negra?
Eduardo de Assis: Obra coletiva, a antologia é fruto de 10 anos de trabalho e reúne 61 pesquisadores de diversas universidades, de todas as regiões do país. Traz um conjunto de 100 escritoras e escritores brasileiros afrodescendentes, muitos deles deixados à margem da história de nossa literatura. Cada um é contemplado com um artigo crítico contendo dados biográficos, apresentação geral da obra, informações bibliográficas e fontes de consulta. Ao final, temos os textos escolhidos pelo pesquisador. É um formato voltado para a divulgação e o estudo destes autores, resgatando muitos deles do esquecimento. Esperamos que, a partir de agora, possam estar mais presentes em nossas bibliotecas e salas de aula. 
Causa Operária: Quando e por que surgiu a iniciativa de realizar esse trabalho? 
Eduardo de Assis: Desde os fins dos anos 90, vimos discutindo a necessidade de construir uma antologia crítica que divulgasse e estudasse a produção literária afro-brasileira, devido à grande ausência de materiais pedagógicos a respeito desta vertente de nossas letras. A pesquisa propriamente dita teve início em 2001. 
Causa Operária: O negro escrito, de Oswaldo de Camargo, pode ser considerado uma obra precursora desse estudo? 
Eduardo de Assis: Sem sombra de dúvida, é um livro-guia, um texto fundamental. A obra de Oswaldo de Camargo, como um todo, precisa ser mais bem estudada, pois, além do jornalismo, abrange poesia, ficção e ensaio. E, em todos esses segmentos, temos literatura da mais alta qualidade, marcada por esmerado apuro formal. Já O negro escrito é de grande importância para o estudo desses autores, um trabalho pioneiro e de fôlego. O livro é de 1987 e, antes dele, apenas estudiosos estrangeiros tinham produzido obras densas de conteúdo sobre a questão. E a grande vantagem é que Camargo acrescenta uma preciosa antologia ao final, que abre caminhos para o conhecimento de textos pouco divulgados. Passados 25 anos, é preciso reeditar O negro escrito o quanto antes. 
Causa Operária: Como foi trabalhar com os escritores que participaram da antologia Literatura e afrodescendência no Brasil? 
Eduardo de Assis: Foi um trabalho extremamente gratificante. À medida que íamos conhecendo os autores, fomos vendo o quanto tínhamos para aprender. Nosso repertório de leituras se ampliou largamente ao longo desta década e hoje acredito estarmos bem mais informados. E não só a respeito da escrita afro-brasileira propriamente dita, mas de todo um contexto histórico que exclui o negro da literatura e da cultura erudita como um todo. Além disso, colhemos depoimentos preciosos de autores como Abdias Nascimento, Oswaldo de Camargo, Cuti e Conceição Evaristo, entre outros, transcritos no volume 4 da coleção. E muito de nossa história ganha sentido novo quando colocado através do olhar das vítimas da pretensa “democracia racial” aqui existente. 
Causa Operária: Quais foram as dificuldades encontradas para a realização da pesquisa? 
Eduardo de Assis: Foram inúmeras. Primeiramente, a extensão do material a ser pesquisado, pois começamos com uma lista de 255 nomes. Em seguida, o estabelecimento de critérios de seleção: depois de muito discutirmos, o grupo definiu que deveríamos ter como foco a produção poética e ficcional, o que deixou de fora os ensaístas, por exemplo. Outro critério estabelecido foi o de, num primeiro momento, privilegiar autores com pelo menos um livro individual publicado. Além disso, não foi fácil encontrar os textos de alguns autores já falecidos ou de fora do eixo Rio-São Paulo. E, ainda, a localização de herdeiros detentores de direitos autorais, só para ficarmos nos obstáculos mais difíceis de transpor. 
Causa Operária: Alguns autores tiveram então que ficar de fora? 
Eduardo de Assis: Sim. Ensaístas do porte de Alberto Guerreiro Ramos, Manoel Querino, Clovis Moura, Lélia Gonzalez e muitos mais. E, também, poetas e ficcionistas sem obra individual ou que não desejam assumir ou explicitar a identidade negra ou afro-brasileira para seus escritos. 
Causa Operária: Existem entendimentos diferentes entre a crítica sobre o que venha a ser a literatura negra? Qual a definição mais corrente? 
Eduardo de Assis: Sim. Há inclusive quem defenda a existência de uma literatura negra escrita por brancos... Ou seja, basta o tema e nada mais. Isso abre espaço para toda uma produção a que chamamos “negrismo”, isto é, marcada pelo descompromisso do olhar externo e folclórico, muito comum entre os modernistas, como Raul Bopp ou Jorge de Lima. Na época, a lucidez de Oswald de Andrade alertou para o que chamava de “macumba para turistas”... O negrismo é forte entre nós e tem tradição, remete à Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, em pleno Romantismo e está em vários outros textos. Voltando à questão conceitual, a definição mais corrente é a de uma literatura escrita por pessoas que assumem a condição de negras, explicitam uma visão de mundo oriunda dessa condição e que se voltam para a escrita, seja para valorizar o vasto repertório cultural herdado dos africanos, seja para protestar e denunciar o racismo e a desigualdade ainda vigentes entre nós. Esse perfil militante caracteriza diversos autores, mas não todos, o que aponta para a insuficiência até certo ponto do conceito.  
Causa Operária: E quanto ao conceito de literatura afro-brasileira?
Eduardo de Assis: Para muitos, é sinônimo de literatura negra. E, de fato, ambos os conceitos adotam critérios comuns em sua constituição, como a autoria, o tema, a busca de um público específico, a linguagem empenhada em combater os tabus linguísticos de fundo racista, entre outros. Mas concordo que “literatura afro-brasileira” é um termo mais amplo, pois engloba aqueles autores que, embora assumindo um ponto de vista identificado ao negro e à sua cultura, fogem do texto abertamente militante ou panfletário; e que, às vezes, falam mais do branco do que do negro, a exemplo de Machado de Assis. Autores, enfim, que manifestam sua negrura (ou negrícia) de modo mais sutil. De todo modo, essa é uma discussão em processo, e de importância apenas relativa. O fundamental é constatarmos que a presença do negro na cultura não se limita à música, à dança ou ao esporte – espaços, aliás, onde muitos os querem confinar. Também na literatura há um grande contingente de autores com textos de relevância histórica e bem construídos enquanto obra de arte. 
Causa Operária: Qual a situação da crítica literária atualmente com relação à literatura negra? 
Eduardo de Assis: No passado, salvo algumas exceções, a atitude era de deliberado desconhecimento. E são raros os manuais de história da literatura brasileira que abordam autores como Luiz Gama, Solano Trindade ou Abdias Nascimento. No presente, nota-se um interesse maior, tanto em autores vivos – Nei Lopes, Cuti, Miriam Alves, Joel Rufino dos Santos, Oswaldo de Camargo, Éle Semog, Conceição Evaristo, Paulo Lins, Ana Maria Gonçalves, Salgado Maranhão, Edimilson de Almeida Pereira –, quanto no processo de redescoberta de nomes como os paulistas Lino Guedes (que deixou 13 livros publicados nas décadas de 1930 e 1940) e Paulo Colina, o paraense Bruno de Menezes, o paraibano Arnaldo Xavier, o maranhense Nascimento Moraes, o gaúcho Oliveira Silveira, o mineiro Adão Ventura, e vários outros. 
Causa Operária: Como a literatura negra se relaciona com a literatura brasileira em geral e qual a importância de um segmento especificamente negro em nossas letras? 
Eduardo de Assis: A literatura afro-brasileira jamais deixará de ser brasileira, de ser escrita em português do Brasil (com todas as contribuições vocabulares trazidas pelos africanos e seus descendentes), de utilizar praticamente os mesmos gêneros literários, procedimentos e formas de expressão. É, portanto, um segmento, uma faceta específica de nossa literatura. Mas que reivindica sua autonomia, sobretudo quanto a um ponto de vista identificado com a cultura e com a história de lutas do povo negro. Ponto de vista que se traduz, por exemplo, na desconstrução de estereótipos racistas, via de regra manifestos na linguagem. A vertente afro confere à literatura brasileira uma maior diversidade e variedade de abordagens, seja no enfoque da questão social, seja na linguagem com que toda essa história é traduzida em palavras, pois registra o olhar do Outro, do subalterno que quase nunca pode falar. 
Causa Operária: A literatura negra é ainda vista como um segmento marginal da literatura brasileira? 
Eduardo de Assis: Em alguns salões – e muitas salas de aula – infelizmente ainda sim. Mas a história é, antes de tudo, discurso. Logo, precisa ser reescrita a cada dia. Sou otimista e acredito que, no momento em que o Brasil for uma sociedade multiétnica verdadeiramente democrática em todos os sentidos, então seremos todos respeitados em nossas diferenças e não será necessário especificar este ou aquele segmento para que o mesmo possa ser acolhido como parte de nossa civilização. 
Causa Operária: Qual foi a repercussão desse trabalho quando lançado e, em especial, entre o movimento negro? 
Eduardo de Assis: Houve repercussões variadas, inclusive de um poeta que disse que esse assunto não existe... que falar disto é “preconceito cultural”, e muitas outras bobagens. Mas, na grande maioria dos casos, a antologia foi muito bem recebida, entrou na lista dos 10 livros mais importantes de 2011 do jornal O Globo, e esgotou a primeira edição em apenas dois meses. E também no âmbito do movimento negro tivemos uma recepção altamente favorável. O fato é que o negro sempre falou, escreveu e publicou. E hoje continua a falar, escrever e publicar. Só que boa parte dessa produção careceu (e ainda carece) de uma maior visibilidade. 
Causa Operária: Um dia antes do lançamento desse estudo, Ferreira Gullar publicou um artigo na imprensa onde nega a existência de uma “literatura negra”, fala em literatura simplesmente. Como você encara essa opinião de Gullar? 
Eduardo de Assis: Encaro com naturalidade e com todo respeito à diferença. Ele é um homem de outro tempo, nascido na grande fazenda patriarcal brasileira da primeira metade do século passado. Tem suas convicções. Agora, não deixa de ser frustrante ver alguém que já foi de esquerda falar em “literatura simplesmente”, em “literatura tout court” e termos semelhantes, numa posição formalista e esteticista, numa postura burguesa e eurocêntrica, que seus camaradas de geração chamariam simplesmente de alienada... Enfim, uma postura tradicional e acadêmica no pior sentido da expressão. 
Causa Operária: A opinião de Gullar é uma opinião geral? 
Eduardo de Assis: Não acredito. Talvez seja a opinião da Folha de S. Paulo, onde a crônica dele foi publicada e que não acatou nenhuma das réplicas que para lá foram enviadas. 
Causa Operária: Qual a situação da literatura negra hoje?  
Eduardo de Assis: Considero que é de franco crescimento. Nos últimos anos, saíram pelo menos 10 bons romances, assinados por Joel Rufino dos Santos, Nei Lopes, Francisco Maciel, Paulo Lins, Conceição Evaristo, Oswaldo Faustino, Ana Maria Gonçalves, entre outros. Um defeito de cor, escrito por esta última, ganhou o Prêmio Casa de las Américas de 2006, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, vendeu nada menos que 20.000 exemplares no Brasil, além de esgotar a tradução norte-americana. Ainda na ficção, temos a nova edição de A descoberta do frio, de Oswaldo de Camargo, e diversos volumes de contos, de autoras como Miriam Alves, Lia Vieira, a própria Conceição Evaristo, além de jovens como Lande Onawale, Cristiane Sobral, Cidinha da Silva, Ademiro Alves (Sacolinha), Allan da Rosa, e muitos mais. Na poesia, estão em plena atividade Cuti, Edimilson de Almeida Pereira, José Carlos Limeira, Salgado Maranhão, Ronald Augusto, Domício Proença Filho, entre tantos. E ainda toda uma geração que passa por Lívia Natália e Mel Adún, na Bahia; Ana Cruz e Cyana Leahy, no Rio de Janeiro; Waldemar Eusébio e Marcos Dias, em Minas. No campo fértil da literatura infantil e infantojuvenil, a cada dia surgem livros novos de Júlio Emílio Braz, Rogério Andrade Barbosa, Heloisa Pires, Joel Rufino dos Santos, Cidinha da Silva, além de toda uma geração de novos autores e autoras buscando espaço no meio editorial. E segue firme a descentralização da produção, com editoras cujo foco é afro: Pallas, no Rio de Janeiro; Selo Negro, em São Paulo; Mazza e Nandyala, em Belo Horizonte. Para concluir, não custa lembrar que a ONG Quilombhoje, de São Paulo, mas com ramificações em todo o país, mantém uma tradição ininterrupta de publicações coletivas desde 1978 – a série Cadernos Negros – que edita todo ano um volume de prosa ou poesia com média de 20 autores por livro. Em 2011, veio a público o número 34.

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