Entrevista
09.03.2012 17:57
Herança maldita
Em 2011 um comercial da Caixa Econômica Federal retratou o escritor
Machado de Assis como um dos mais antigos correntistas da empresa. O
objetivo era comemorar os 150 anos da instituição, mas o resultado foi
uma chuva de críticas de entidades ligadas às questões raciais. A peça
trazia Machado, um afrodescendente, interpretado por um ator branco.
Criticada pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
da Presidência da República (Seppir), a Caixa prontamente tirou o vídeo
do ar com um pedido de desculpas.
Para o especialista em literatura afro-brasileira Eduardo de Assis
Duarte, o caso foi apenas mais um no esforço histórico para apagar as
raízes africanas do escritor. Lançada em 2011 e organizada por Duarte, a
antologia Literatura e Afrodescendência no Brasil (Editora UFMG) reúne
vida, obra e análise crítica de cem autores negros em 2 mil páginas e
quatro volumes. O objetivo é ampliar a visibilidade e a reflexão a
respeito dos escritores afro-brasileiros. Em entrevista concedida por
telefone a Carta na Escola, o doutor em Literatura pela USP
fala de novas leituras possíveis de autores consagrados, de preconceito e
dos entraves ao ensino da literatura afro-brasileira nas escolas.
Carta na Escola: Como o professor pode usar a antologia Literatura e Afrodescendência no Brasil para selecionar autores e ler com seus alunos?
Eduardo de Assis Duarte: A antologia é fruto de uma pesquisa de dez
anos, envolvendo 65 professores e pesquisadores vinculados a 21
universidades brasileiras e a seis universidades estrangeiras.
Pro-curamos cobrir a produção dos afro-brasileiros em todas as regiões
do País e, com isso, dar visibilidade a autores relegados, tanto por
estarem distantes dos grandes centros -como por tratar da questão
racial. Procuramos construir uma obra útil ao professor em diversos
sentidos. Lá, ele encontra não apenas autores completamente esquecidos,
como o poeta paulista negro Lino Guedes, como também autores clássicos,
como Machado de Assis, que foram embranquecidos pelo sistema e
apresentados como indivíduos alienados de sua condição étnico-racial e
mesmo alheios aos problemas do seu tempo.
CE: Como o senhor definiria a literatura afro-brasileira? Ela é caracterizada pelo autor ou pela temática?
CE: Como o senhor definiria a literatura afro-brasileira? Ela é caracterizada pelo autor ou pela temática?
EAD: Pelos dois. Mas, isoladamente, nem o autor nem a
temática são suficientes. Porque há, por exemplo, autores brancos que
falam do negro a partir de uma -perspectiva dominante, europeia. E,
muitas vezes, o negro é colocado como uma figura folclórica ou apenas
como o tema. É preciso uma articulação entre autoria e temática e,
subjacente a ambas, o ponto de vista identificado com a
afrodescendência, ou seja, com a visão de mundo do negro. Quando você
tem um ponto de vista afro identificado, isso interfere na linguagem, e a
linguagem dessa literatura surge despida dos estereótipos e dos valores
disseminados pelo o que a gente chama de “branquitude” hegemônica. Essa
conjunção de autoria, temática, ponto de vista e linguagem – todos eles
fundados no ser e no existir do negro – visa atingir um quinto elemento
dessa construção cultural, que é a formação de um público receptor
afrodescendente. Só a partir dessas cinco instâncias é possível falar de
uma literatura afro-brasileira ou negra na plenitude do termo.
CE: Alguns autores como Cruz e Sousa e Lima Barreto já são estudados nas aulas de Literatura, tratá-los como autores afro-brasileiros mudaria o modo como são estudados?
CE: Alguns autores como Cruz e Sousa e Lima Barreto já são estudados nas aulas de Literatura, tratá-los como autores afro-brasileiros mudaria o modo como são estudados?
EAD: Sem dúvida. Cruz e Sousa é apresentado aos
estudantes como um “negro de alma branca”, um poeta alienado de sua
condição étnica e social. E, em geral, só são lidos seus primeiros
textos, marcados pelas repetições de imagens caras ao simbolismo.
Os textos mais maduros, como Emparedado, em que ele faz uma
crítica muito forte ao racismo embutido na ciência e na filosofia da
segunda metade do século XIX, ficam de fora. Então, ver Cruz e Sousa
como um autor negro dá abertura para a leitura desses textos mais
políticos. A mesma coisa com Lima Barreto. Ele é apresentado como um
romancista menor, uma espécie de cronista de subúrbio, ainda acusado de
escrever mal. Com isso, fica de lado todo um trabalho de Lima Barreto
com os afrodescendentes. Eu citaria, por exemplo, o preconceito racial
que é transformado em drama literário por ele. Essa questão está
presente em dois de seus romances esquecidos. O primeiro é Recordações do Escrivão Isaías Caminha e o outro é Clara dos Anjos,
em que a questão da mulher afrodescendente é colocada de outra forma.
Normalmente, a literatura brasileira hegemônica trata a mulata dentro
daqueles estereótipos da mulata assanhada e sensual. Em Clara dos Anjos
a coisa é diferente: você tem um caso de sedução de uma menina mulata
por um branco, em que ela é abandonada. As relações inter-raciais são
trabalhadas tanto em Lima Barreto quanto em Cruz e Sousa de maneira
problemática e não como um aspecto folclórico, festivo, carnavalesco do
País.
CE: Recentemente, tivemos o caso do comercial da Caixa Econômica Federal que mostrava um Machado de Assis “embranquecido”. O que caracteriza Machado de Assis como um escritor afrodescendente? Existe esforço da crítica em minimizar esse fato?
CE: Recentemente, tivemos o caso do comercial da Caixa Econômica Federal que mostrava um Machado de Assis “embranquecido”. O que caracteriza Machado de Assis como um escritor afrodescendente? Existe esforço da crítica em minimizar esse fato?
EAD: É um problema. Há um esforço histórico no
Brasil de embranquecimento de Machado de Assis. Quando Machado morre em
1908, foram emitidos dois documentos. O primeiro é um atestado de óbito
que afirma que ele é branco. Mas a máscara mortuária, tirada no mesmo
dia, expressa com toda nitidez seus traços de afrodescendente. O
episódio da Caixa Econômica é apenas mais um capítulo e deve-se
destacar, inclusive, a pronta intervenção dos órgãos governamentais que,
sensíveis às milhares de mensagens de protesto surgidas na internet,
logo se desculparam e substituíram o comercial. Os romances machadianos
recusam o panfletarismo e o imediatismo da luta política daquela época e
adotam a “poética da dissimulação”, conjunto de procedimentos em que a
ironia é apenas a ponta do iceberg. Muitas vezes, para falar do negro,
Machado fala do branco. Um ponto curioso no projeto romanesco do
escritor é que ele mata os senhores de escravos em quase todos os
livros. Em Memorial de Aires, Machado mata o barão de Santa Pia
logo após o fim da escravidão. O velho escravocrata não aguenta ver a
festa dos negros celebrando a abolição e morre três semanas depois. O
curioso é que a herdeira da fazenda distribui a terra entre os antigos
escravos. É a primeira cena de reforma agrária do romance brasileiro.
Ninguém comenta isso. Machado sempre foi contra a escravidão, mas havia
um pudor imenso quanto à utilização do texto panfletário na literatura.
Nas crônicas, que são muito pouco estudadas, ele é muito mais explícito.
Mas ali ele estava protegido pelo pseudônimo. José Galante de Sousa, um
dos maiores estudiosos da obra machadiana, anotou 23 pseudônimos em
textos de Machado de Assis.
CE: O escritor moçambicano Mia Couto, na Conferência
Internacional de Literatura, em Estocolmo, declarou que “a África tem
sido sujeita a sucessivos processos de essencialização e folclorização, e
muito daquilo que se proclama como autenticamente africano resulta de
invenções feitas fora do continente. Os escritores africanos sofreram
durante décadas a chamada prova de autenticidade: pedia-se que seus
textos traduzissem aquilo que se entendia como sua verdadeira
etnicidade”. Em que medida tratar os autores por sua etnia não acaba
reduzindo a apreciação de sua produção artística?
EAD: Mia Couto está certo. Há uma idealização da
África, mas acontece que essa queixa pode-se aplicar a qualquer outro
continente ou país. Basta ver o caso brasileiro: nós habitamos um país
“abençoado por Deus e bonito por natureza” e somos um país com uma
espécie de “essência mestiça” que nos faz alegres, tolerantes,
receptivos, sensuais etc. Quantos de nós não acreditamos piamente nisso?
Muitos autores negros vão acabar idealizando uma “Mãe África” até como
-forma de se contrapor a essa ideia de -paraíso tropical difundida aqui
pelo pensamento hegemônico brasileiro. Quando nós falamos de literatura e
afrodescendência, não estamos sendo benevolentes ou abrindo mão de
abordagens críticas. Em toda produção cultural há obras boas e ruins. Se
hoje muitos escritores fazem questão de se declarar negros e afirmar em
seus textos os valores inerentes à essa condição, certamente eles têm
razões históricas para isso. Não seria um gesto de legítima defesa? No
dia em que o Brasil for uma sociedade multiétnica e verdadeiramente
democrática, acho que não vai haver necessidade de cunhar essa vertente
das nossas letras com o qualificativo de “negra” ou “afro-brasileira”.
CE: A lei que determina a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira (n.º 10.639/2003) mudou a recepção desse tipo de literatura nas escolas?
CE: A lei que determina a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira (n.º 10.639/2003) mudou a recepção desse tipo de literatura nas escolas?
EAD: Ela tem mudado, mas muito lentamente. Na maioria das escolas, a
lei só é lembrada em 13 de maio e 20 de novembro. Isso porque falta à
maioria dos professores capacitação e mesmo repertório para tratar das
questões com os alunos de forma adequada. Até hoje, os cursos voltados à
formação docente ignoram solenemente a cultura e a literatura
afro-brasileira. Mas sou otimista, acho que estamos indo em frente, no
caminho certo. Nosso núcleo de pesquisas da UFMG recebe e-mails de
professores do Brasil todo, empenhados em trabalhar esses conteúdos.
CE: Quais são os entraves para o ensino efetivo da literatura afro-brasileira nas escolas?
CE: Quais são os entraves para o ensino efetivo da literatura afro-brasileira nas escolas?
EAD: O principal entrave é o preconceito. Achar que
essa literatura é coisa menor, sem relevância ou qualidade estética. Em
seguida, outro entrave é a omissão que você vê nos manuais e nos livros
didáticos, que ignoram em grande medida esse segmento da literatura
brasileira.
CE: Quais são os caminhos que o professor de Ensino Médio deve seguir para abordar o tema da literatura afro-brasileira nas salas de aulas?
CE: Quais são os caminhos que o professor de Ensino Médio deve seguir para abordar o tema da literatura afro-brasileira nas salas de aulas?
EAD: O primeiro caminho é ler os autores. Tenho certeza de que esses
professores, quando lerem Solano Trindade, Carolina de Jesus, Joel
Rufino dos Santos, Ney Lopes, Miriam Alves, Ana Maria Gonçalves, Oswaldo
de Camargo e muitos outros, vão gostar e, se forem de fato educadores,
vão querer levá-los para seus alunos.
CE: Como o senhor avalia a atual situação da literatura negra no Brasil? Existe espaço para esses autores nas grandes editoras?
CE: Como o senhor avalia a atual situação da literatura negra no Brasil? Existe espaço para esses autores nas grandes editoras?
EAD: É um espaço reduzido. Nos últimos 30 anos,
houve um grande incremento dessa literatura, mas a partir de esquemas
alternativos. Em São Paulo, você tem o grupo Quilombhoje, que publica
desde 1978, em forma de produção cooperativada, os Cadernos Negros.
Fora isso, há editoras pequenas focadas nessa produção. Aqui em Belo
Horizonte, temos duas editoras: a Mazza, com mais de 25 anos, focada
nessa temática, e, recentemente, a editora Nandyala. No Rio de Janeiro,
há a editora Pallas, com mais de 500 títulos publicados. Em São Paulo,
novamente, existe o Selo Negro, do grupo editorial Summus. Mas, quase
sempre, as grandes editoras ignoram essa produção, pois estão
preocupadas com autores canônicos e também com os best sellers.
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